Uma reflexão sobre o fascínio do público pelo sofrimento alheio e o papel da mídia na propagação da violência
Ontem a noite eu estava na sala com a minha família assistindo o jornal e me deparei com mais uma daquelas tragédias que os jornais gostam de noticiar. Um homem, que não aceitava o fim do relacionamento, assassinou a ex-mulher a facadas em plena via pública. Até aí, infelizmente, nada de novo — o enredo é velho conhecido dos noticiários. Mas o que me paralisou não foi só o conteúdo da notícia. Foi a forma como ela foi apresentada: imagens de câmera de segurança mostravam a mulher tentando fugir, lutando pela vida, enquanto levava dezenas de golpes. Mesmo embaçada, a cena era perturbadora.
Fiquei ali, imóvel, entre a indignação e o espanto. Por que isso está sendo exibido assim, em horário nobre? Qual é o limite entre informar e explorar? E, mais do que isso: por que seguimos assistindo?
Foi então que me dei conta de algo bem incômodo — tragédia dá audiência. E onde há audiência, há lucro. A dor virou produto. O sofrimento alheio, uma mercadoria valiosa para quem vive da atenção do público.
Este post nasce desse desconforto. Vamos falar sobre a indústria das más notícias, sobre como a mídia lucra com a desgraça, sobre o papel que nós, espectadores, temos nesse ciclo. E, principalmente, sobre os efeitos que esse consumo constante de violência pode causar dentro da nossa mente e da nossa sociedade.
A indústria do sensacionalismo: quando o sofrimento vira lucro
Não é segredo para ninguém que a mídia vive de ibope. Quanto mais gente assiste, maior o valor da propaganda. E nada chama mais a atenção do que o sofrimento humano. A dor, o desespero e a morte se tornaram parte do cardápio do entretenimento noturno.
Noticiários policiais e programas que exploram crimes violentos estão entre os mais assistidos da televisão brasileira. O problema não está apenas em informar sobre a violência, mas em espetacularizá-la, com trilhas sonoras, reconstituições dramáticas, repetições infinitas de cenas chocantes e narrações que alimentam o medo e a raiva.
Segundo reportagem da BBC Brasil, a explicação psicológica para isso está ligada à forma como nosso cérebro reage ao medo e à curiosidade em torno do perigo. A mídia sabe disso e utiliza esse mecanismo para manter os olhos do público vidrados na tela.
O El País Brasil também trouxe reflexões importantes sobre como parte da imprensa se tornou cúmplice de uma indústria de dor, deixando de lado o jornalismo sério para priorizar o impacto.
O prazer em assistir o sofrimento alheio: por que isso atrai tanto?
É desconfortável admitir, mas há algo no sofrimento alheio que prende o olhar. Quando uma tragédia acontece, é comum vermos pessoas que não conseguem mudar de canal, virar o rosto ou simplesmente ignorar a notícia. Há quem chore, se revolte, comente com indignação — mas assiste. E essa reação tem raízes profundas no comportamento humano.
Do ponto de vista psicológico, o ser humano é naturalmente atraído por eventos que envolvem perigo, dor ou emoção intensa, porque eles ativam nossos instintos mais primitivos de alerta e sobrevivência. É como se o cérebro dissesse: “preste atenção nisso, porque pode representar uma ameaça”. Por isso, tragédias chamam mais atenção do que boas notícias. É uma questão de biologia, mas também de cultura.
Na sociedade atual, marcada por uma enxurrada diária de informações, a tragédia virou um produto de alto consumo. Jornais e programas sensacionalistas sabem disso e constroem suas pautas de forma estratégica: títulos chamativos, trilha sonora dramática, imagens impactantes e, claro, uma boa dose de repetição. O sofrimento vira espetáculo. A dor do outro, entretenimento. E quanto mais impactante for a notícia, maior a audiência.
Esse fascínio, no entanto, não vem sem consequências. Ele pode alimentar sentimentos de morbidez, insensibilidade ou até prazer disfarçado em ver alguém em situação pior que a nossa — o chamado “schadenfreude”, termo alemão que descreve o prazer que algumas pessoas sentem ao testemunhar a desgraça alheia.
Mais do que isso, nos acostuma com a ideia de que a dor é normal, que viver em estado de alerta constante é inevitável, que o mundo está perdido e que não há mais o que fazer. É um veneno sutil que, aos poucos, vai tirando nossa esperança, nossa empatia e até nossa vontade de lutar por algo melhor.
O ciclo da dor: como a mídia alimenta e se alimenta do sofrimento
A cobertura de tragédias e crimes violentos não é apenas pontual — ela faz parte de um ciclo repetitivo e lucrativo que se alimenta da própria audiência que ajuda a construir. Funciona mais ou menos assim: a mídia exibe uma tragédia → o público assiste e reage → a audiência cresce → o modelo se fortalece → novas tragédias são exploradas com ainda mais ênfase.
Esse ciclo é perigoso porque normaliza a exposição do sofrimento alheio como se fosse mero entretenimento. A dor real de pessoas reais é transformada em pautas friamente roteirizadas. Quando uma emissora coloca no ar, em horário nobre, cenas de uma mulher sendo assassinada, ainda que parcialmente embaçadas, ela está deliberadamente apostando que isso prenderá o público. E geralmente prende.
Mas a lógica não para por aí. Quanto mais o público consome esse tipo de conteúdo, mais ele se habitua a ele. O que antes chocava, agora entretém. O que causava indignação, passa a gerar comentários, memes e debates vazios. Criamos uma espécie de insensibilidade coletiva, um embotamento emocional causado pelo excesso de exposição à dor do outro.
É um ciclo que desumaniza. A vítima vira número. O agressor, personagem. A violência, espetáculo. E a audiência, cúmplice — ainda que inconscientemente.
Por trás de tudo isso, há uma engrenagem que funciona muito bem para quem lucra com o caos. Os patrocinadores continuam investindo. As emissoras mantêm seus horários com altos índices. E o público, hipnotizado pela tragédia, acaba por reforçar o sistema que o afeta.
Mas… será que esse tipo de conteúdo não causa efeitos diretos em quem consome? É sobre isso que falaremos no próximo tópico.
Alternativas para uma comunicação mais ética
A boa informação é essencial para qualquer sociedade. A imprensa tem um papel fundamental em denunciar abusos, expor injustiças e dar voz a quem sofre em silêncio. O problema não está em noticiar a tragédia, mas na forma como ela é tratada — quando a dor vira espetáculo, a dignidade da vítima é ignorada, e a ética cede lugar à audiência.
Mas será que é possível informar sem explorar? A resposta é sim. Existem veículos e profissionais comprometidos com um jornalismo mais humano, responsável e construtivo. Esses modelos de comunicação se preocupam em:
- Preservar a imagem e a privacidade das vítimas, evitando exibir cenas fortes ou humilhantes;
- Dar contexto às notícias, para que o espectador compreenda causas e consequências dos fatos, e não apenas veja um ato brutal isolado;
- Focar em soluções, mostrando o que pode ser feito para evitar novas tragédias e como a sociedade pode reagir de forma positiva;
- Promover empatia, e não medo ou indiferença;
- Equilibrar pautas, para que as boas ações, histórias de superação e iniciativas solidárias também tenham espaço.
Esse tipo de jornalismo existe e precisa
Os efeitos nocivos do consumo de violência
Não é apenas uma questão moral ou espiritual. É também uma questão de saúde mental. Estar exposto constantemente a notícias violentas pode gerar um estado de estresse crônico, ansiedade, medo generalizado e apatia social.
Estudos da American Psychological Association mostram que o consumo frequente de notícias negativas está diretamente ligado ao aumento de distúrbios psicológicos. Já a Frontiers in Psychology aponta que assistir a coberturas intensas de eventos violentos pode desencadear um ciclo de sofrimento emocional que se retroalimenta.
Além disso, essa exposição constante pode nos dessensibilizar. Começamos a tratar o sofrimento como algo comum, quase natural. É o caminho inverso da empatia.
Nosso papel como espectadores e cristãos
Não podemos controlar o que a mídia exibe, mas podemos escolher o que consumimos. Podemos mudar de canal, desligar a TV, questionar, denunciar o sensacionalismo e apoiar projetos jornalísticos que priorizam a verdade e o respeito humano.
Como cristãos, temos uma responsabilidade ainda maior: sermos luz. Isso significa não alimentar a escuridão com nossa atenção. Não aceitar como normal o que claramente está errado. E, sempre que possível, promover a paz, o respeito e a empatia.
Se você quiser se aprofundar no tema, recomendo o Observatório da Imprensa, que traz reflexões críticas sobre o papel da mídia, e este episódio do podcast “Café da Manhã”, que discute por que tragédias dão tanta audiência.
Conclusão: O espetáculo da dor precisa acabar — e isso começa por nós
Vivemos em uma sociedade saturada por tragédias. Elas estão em todos os lugares: nos noticiários, nas redes sociais, nos programas de entretenimento que já nem disfarçam mais o prazer em exibir o sofrimento alheio. E embora a responsabilidade da mídia seja enorme, não podemos ignorar que há um público por trás de cada cena de violência transmitida.
Mas há uma saída. E ela começa com um olhar mais crítico, mais humano e mais consciente. Precisamos entender que informar não é o mesmo que explorar, e que assistir não é o mesmo que se envolver. Nosso tempo, nossa atenção e nossa audiência são valiosos — e quando os direcionamos para conteúdos que promovem a vida, a empatia e a verdade, estamos plantando sementes de transformação.
A dor de alguém não deve ser transformada em espetáculo, em entretenimento ou em estratégia de lucro. O sofrimento humano exige respeito, não audiência. E quanto mais nos posicionarmos contra a banalização da violência, mais difícil será para os exploradores do caos manterem seus holofotes acesos.
Que possamos, como cristãos e cidadãos, escolher trilhar um caminho mais nobre. Um caminho que rejeita o fascínio pelo sangue e abraça o compromisso com a dignidade humana. Como diz o versículo em Mateus 24:12:
“E, por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará.”
Que o nosso amor, no entanto, permaneça aquecido. Que sejamos luz num mundo que, tantas vezes, insiste em vender trevas.